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PLD/CFT e KYC

A Lei nº 14.286/2021 (Novo Marco Cambial), ao mesmo tempo que simplificou as operações de câmbio, manteve e reforçou as obrigações das instituições financeiras relativas à prevenção a ilícitos. A conformidade com os procedimentos de Prevenção à Lavagem de Dinheiro (PLD/CFT) e Conheça seu Cliente (KYC) é um requisito para a atuação no setor.

Definições de KYC e PLD/CFT

  • KYC (Know Your Customer / Conheça seu Cliente): Refere-se aos procedimentos para identificação, qualificação e verificação da identidade de clientes. As atividades incluem a coleta de documentos, a análise do perfil de risco e da capacidade financeira, e a manutenção de cadastros atualizados (diligência contínua).

  • PLD/CFT (Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Combate do Financiamento do Terrorismo): Corresponde ao conjunto de políticas, controles e procedimentos implementados por instituições financeiras para detectar, analisar e reportar atividades suspeitas, em cumprimento à regulamentação vigente. Um programa de PLD/CFT é dependente de um processo de KYC eficaz.

Ciclo de Conformidade

Na prática, os conceitos se materializam em um ciclo contínuo de análise e monitoramento, desde o primeiro contato com o cliente.

Onboarding

É a porta de entrada - nenhum cliente pode operar sem antes passar por um rigoroso processo de cadastro e análise, que varia em complexidade conforme o perfil. Este processo inclui duas verificações críticas: Screening e a identificação de PEPs.

  • Screening (Verificação em Listas): Durante o onboarding, o nome do cliente (e dos sócios/beneficiários finais no caso de PJ) é automaticamente verificado contra diversas listas restritivas nacionais e internacionais. O objetivo é identificar se o indivíduo está associado a:

    • Listas de Sanções: Como as da ONU, OFAC (EUA) ou União Europeia, que proíbem transações com certas pessoas, grupos ou países.
    • Mídia Adversa: Notícias negativas que possam associar o cliente a investigações criminais, corrupção, etc.
    • Listas de Observação Internas e de Órgãos Reguladores.
  • Identificação de PEPs (Pessoas Expostas Politicamente): A regulamentação exige a identificação de clientes que são (ou foram nos últimos 5 anos) Pessoas Expostas Politicamente. Isso inclui políticos, membros do alto escalão do judiciário, executivo e legislativo, e dirigentes de empresas estatais, bem como seus familiares e colaboradores próximos.

    • Por que é importante? Clientes classificados como PEPs representam um risco maior de envolvimento em corrupção e suborno. Por isso, eles são submetidos a uma diligência mais aprofundada (EDD - Enhanced Due Diligence) e a um monitoramento contínuo mais rigoroso de suas operações.

Análise da Operação

Após o cadastro inicial do cliente (Onboarding e KYC), cada operação de câmbio passa por uma segunda camada de análise antes de ser executada. Esta etapa não foca mais em "quem é o cliente", mas sim em "esta operação específica faz sentido para este cliente?".

O objetivo é avaliar a legitimidade, a legalidade e a compatibilidade econômica da transação com o perfil de risco e a capacidade financeira do cliente, previamente estabelecidos. Esta análise se baseia em três pilares principais que serão abordados em seguida.

Compatibilidade Econômico-Financeira

Verifica se o valor da operação é consistente com a capacidade financeira declarada do cliente.

  • Exemplo (Pessoa Física): Um estudante solicita uma remessa de US$ 50.000 para "manutenção de residente". O valor é incompatível com o perfil de um estudante sem renda declarada. A instituição solicitará documentos que comprovem a origem dos recursos, como a declaração de imposto de renda dos pais (doadores) ou a venda de um bem.

  • Exemplo (Pessoa Jurídica): Uma empresa de consultoria com faturamento anual de R$ 500.000,00 solicita um pagamento de US$ 200.000,00 a um fornecedor. O valor é desproporcional ao faturamento. O banco questionará e solicitará provas da origem dos fundos, que poderia ser um aporte de capital ou um empréstimo bancário.

Fundamento Econômico e Legalidade

Verifica se a operação possui um propósito lícito e comprovado por documentação suporte.

  • Exemplo (Pessoa Jurídica): Uma empresa de importação paga por uma "consultoria de marketing" a uma empresa em uma jurisdição de alto risco. A natureza do serviço é subjetiva e o destino é um fator de risco. O banco exigirá a apresentação do contrato de prestação de serviços para validar a legitimidade da transação.

  • Exemplo (Pessoa Física): Um cliente solicita o envio de US$ 30.000,00 ao exterior para "pagamento de serviços". A descrição é genérica - a instituição solicitará a invoice (fatura) ou o contrato de serviço que especifica o que está sendo pago, para quem e por qual motivo, garantindo que não se trata de uma operação simulada.

Monitoramento Contínuo de Transações

A análise não é apenas estática, mas dinâmica. Os sistemas da instituição monitoram o comportamento do cliente ao longo do tempo para identificar desvios do padrão esperado - exemplos de alertas comuns ("Red Flags"):

  • Estruturação (Smurfing): Um cliente realiza diversas operações de US$ 9.500,00 em dias seguidos. Isso é um forte indício de que ele está intencionalmente fracionando uma operação maior para tentar evitar os limites de reporte automático.

  • Mudança Súbita de Perfil: Um exportador que sempre recebeu pagamentos da Alemanha e dos EUA começa a receber múltiplas transferências de valores menores de vários países do leste europeu, sem uma justificativa comercial clara.

  • Triangulação de Operações: Uma empresa importa um produto da China, mas a ordem de pagamento é para uma entidade intermediária no Panamá, que não tem relação aparente com o exportador original.

Comunicação ao COAF

Se, após a análise, uma transação ou um padrão de comportamento for considerado suspeito, a instituição financeira é legalmente obrigada a comunicá-lo ao COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras). O COAF analisa esses dados e, se identificar indícios de crime, encaminha as informações para as autoridades competentes.

Impacto do Novo Marco Cambial sobre a Conformidade

A Lei nº 14.286/2021 substituiu o controle processual prévio por um modelo focado na responsabilidade da instituição financeira. A maior liberdade na formalização dos negócios foi acompanhada de uma maior exigência sobre a robustez dos sistemas de compliance. O foco da supervisão regulatória deslocou-se, portanto, da forma do processo para a avaliação da eficácia dos programas de PLD/CFT implementados pela instituição, onde os processos de screening e a identificação e tratamento de PEPs são fundamentais.